A união dos bósnios

Algo está a unir os bósnios: o desemprego, e a revolta contra a “elite” corrupta que usa o sistema dos acordos de Dayton para se eternizar no poder. Na rua ensaia-se a democracia popular.

"Demitam-se, bandidos", diz o cartaz deste manifestante em Sarajevo
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"Demitam-se, bandidos", diz o cartaz deste manifestante em Sarajevo ELVIS BARUKCIC/AFP
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A entrada da fábrica Krivaja, em Zavidovici ELVIS BARUKCIC/AFP
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No sábado, em Sarajevo, os manifestantes ataram fitas amarelas ao braço em sinal de protesto ELVIS BARUKCIC/AFP
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A 7 de Fevereiro, os protestos tornaram-se violentos Dado Ruvic/REUTERS
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Tuzla, uma cidade industrial que quase parou após as privatizações, viu protestos violentos a 7 de Fevereiro Dado Ruvic/REUTERS

Amira, uma mulher longilínea com o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo, tem um olhar sério e tem lágrimas nos olhos. Está desempregada há um ano. “Recusei-me a manipular as contas da empresa e pura e simplesmente despediram-me”, contou a um repórter da AFP que a encontrou em Zavidovici, na Bósnia central, uma das três dezenas de cidades desde país-mosaico onde, desde a semana passada, há protestos populares. A revolta é contra o desemprego que atinge 44% da população mas, também, contra a elite política que mantém o país bloqueado.

Era no complexo fabril Krivaja, um gigante económico da ex-Jugoslávia, que trabalhava Amina. Destas fábricas saía mobiliário e casas em madeira, e o grupo também tinha actividade na construção civil. A Krivaja chegou a empregar 16 mil pessoas, diz a AFP. Hoje, na cidade de Zavidovici vivem 14 mil pessoas, e pelo menos metade estão desempregadas.

O que aconteceu em Zavidovici é semelhante ao que se passou em Tuzla, onde começaram os protestos que acabaram por se tornar violentos, com sedes de governo locais incendiadas. A fábrica onde era produzido o detergente da marca Dita, célebre na ex-Jugoslávia, encerrou depois de ser privatizada – uma privatização destrutiva. “Tuzla era uma cidade industrial, no período comunista. Mas depois de privatizada praticamente encerrou toda”, explica Eric Gordy, especialista em Política Eslava e do Leste Europeu no University College de Londres.

“Quando estes bens públicos foram para mãos privadas, os novos proprietários venderam os activos das fábricas, contraíram empréstimos e despediram os trabalhadores. Se há ainda fábricas a trabalhar em Tuzla, fazem-no a um décimo da capacidade que tinham antes da guerra [de 1992-1995]”, explica Gordy.

O caso de Amira, 48 anos e mãe de dois filhos, que está a participar nas manifestações, ilustra a sensação de impotência dos cidadãos. O sentimento de que a elite está toda em conluio. “Queixei-me à justiça, o Ministério Público e os juízes são tão corruptos como os que estão no poder e vi-me no desemprego. Os que ainda trabalham na fábrica – 800, segundo os números oficiais – recebem 160 euros por mês, enquanto os directores recebem 4000 euros. É absurdo”, exclama.

“Eles estão desligados da realidade, pensam que podem reduzir-nos ao silêncio, mas nós já não temos medo, queremos apenas trabalhar e ganhar a vida honestamente”, juntou-se à conversa Semsudin Gradinovic, que combateu na guerra da Bósnia e está no desemprego desde o fim do conflito. “Este poder corrupto tem de se ir embora, são eles ou nós”, afirma Sabahudin, outro manifestante de Zavidovici.

Um país, cinco presidentes
Mas qual é o problema da elite, do “poder corrupto” que os cidadãos bósnios – sem divisões nacionalistas – estão a apontar a dedo, exigindo demissões? “A crise em que a Bósnia se encontra é em grande parte o resultado dos Acordos de Dayton, que acabou com a guerra de 1992-95, mas criou uma estrutura constitucional que pôs demasiada ênfase na identidade étnica”, explica Florian Bieber, professor de Estudos do Sudeste Europeu na Universidade de Graz (Áustria).

“Dayton não estabeleceu um sistema em que os cidadãos sejam os garantes de legitimidade”, sublinha Eric Gordy.

O acordo de paz promovido pelo diplomata norte-americano Richard Holbrooke, entretanto falecido, criou um Estado que garante a representação a três grupos nacionais – sérvios, croatas e muçulmanos bósnios – e divide o poder para ser partilhado.

Existem duas entidades – a república sérvia e a federação croato-muçulmana, que se divide em dez cantões, e o país tem 141 municípios. Há um presidente para cada um destes três grupos étnicos, e rotativamente, de oito em oito meses, um deles ocupa a presidência do país. Mas tanto a federação croata-muçulmana como a República Sérvia elegem o seu próprio presidente permanente. Assim, há um total de cinco presidentes num país com 3,8 milhões de pessoas. Quanto a ministérios, há 136, uns com jurisdição a nível nacional e outros apenas na república sérvia ou na federação.

Mas com todas estas camadas de administração pública, apenas os principais grupos étnicos – muçulmanos, croatas ou sérvios – têm voz. “Os cidadãos não têm maneira de participar na vida do Estado, excepto como membros de um destes grupos. E a estrutura de Dayton foi ocupada por pessoas corruptas, que não seguem os interesses dos cidadãos”, critica Eric Gordy.

“A competição política normal que se vê em qualquer país, entre a esquerda e a direita, não existe verdadeiramente, não há oposição, porque o factor de identificação mais forte dos partidos é o da pertença a um grupo étnico”, completa.

Florian Bieber é mais moderado: “A guerra criou ‘territórios etnicamente limpos’ e destruiu a confiança na sociedade, ajudou uma elite nacionalista a permanecer no poder.” A principal falha dos acordos de Dayton, diz o especialista, “é que ajudou a eternizar as elites no poder.”

Teoria da conspiração
As “elites do poder” não foram ágeis na resposta aos protestos na rua – que se alargaram, em menores dimensões, a outros países da ex-Jugoslávia, como a Sérvia e a Croácia, onde a situação económica está longe de ser brilhante. A Croácia, no entanto, acaba de entrar para a União Europeia, e a Sérvia iniciou negociações já este ano para o fazer.

Num relato publicado no site Bosnia Herzegovina Protest Files, onde são divulgados textos traduzidos para inglês que estão a sair em jornais e blogues bósnios sobre os protestos, Jasmin Mujanovic descreveu como os políticos bósnios reagiram às manifestações. O prisma nacionalista imperou, sempre com uma explicação conspirativa.

“Os protestos são da responsabilidade de centros de poder fora da Bósnia Herzegovina e dirigidos contra os bósnios muçulmanos para desestabilizar o Estado e criar uma terceira entidade; os centros de poder que existem dentro da Bósnia trabalharam contra os croatas e querem abolir os cantões; os centros de poder na federação croato-muçulmana estão a conspirar contra os sérvios, para desestabilizar a República Sérvia, onde não há nenhuns problemas ou razões para protestar”, sumariza Mujanovic. “Se todos estes centros de poder se estão a coordenar entre si ou se foi por acaso que aconteceu tudo ao mesmo tempo, com objectivos contraditórios, ninguém explicou.”

O analista político Srecko Latal, do “think tank” Social Overview Service, também sublinha a inépcia da reacção dos políticos bósnios. “As reacções e os comentários dos líderes locais nos últimos dias indicam que ainda não compreenderam a profundidade da revolta e da frustração da população, ou então não sabem como mudar as suas atitudes, que há muitos anos se baseiam em promessas vazias e/ou retórica radical.”

A cartada nacionalista é o reflexo habitual. “Alguns líderes políticos bósnios reconhecem que a pobreza causa instabilidade. Mas outros tentam impingir teorias da conspiração, sugerem que os protestos fazem parte de planos secretos de alguém no estrangeiro. E estas teorias estranhas são de facto publicadas pelos principais meios de comunicação da Bósnia”, sublinha Florian Bieber.

Os líderes da República Sérvia tem-se recusado a reconhecer que lá há protestos. “A República Sérvia tem os mesmos problemas económicos que o resto da Bósnia, a mesma corrupção. As pessoas não os sofrem de forma diferente só por terem outra origem étnica”, sublinha.

Mas há coisas que explicam por que é que lá têm havido menos protestos do que na federação croato-muçulmana. “Uma delas é o medo; gerações de propaganda nacionalista levam as pessoas a acreditar que a única forma de não se tornarem vítimas de violência é manterem uma entidade étnica separada. Outra coisa é um alto nível de concentração de poder – e provavelmente pode-se dizer também de repressão. Mas isto existe também na  federação croato-muçulmana. Não é uma coincidência que os protestos tenham começado nas duas cidades mais abertas da federação, Tuzla e Sarajevo.”

O impasse matou Berina
Em várias cidades estão a ser organizados plenários, onde os cidadãos em revolta fazem listas de reivindicações, que incluem a demissão dos líderes dos cantões, das presidências, auditorias às contas das empresas privatizadas, fim do financiamento dos partidos políticos com o orçamento cantonal e equiparação dos salários dos políticos com o salário médio dos trabalhadores (que ronda os 422 euros).

Num ensaio de democracia popular nesta conturbada zona dos Balcãs, os cidadãos tentam pôr preto no branco as preocupações que os apoquentam, já que os políticos não podiam estar mais distantes do que é o dia-a-dia.

Por exemplo, em Junho de 2013, houve alguns dias de protestos, embora sem a dimensão dos actuais, por causa da morte de uma bebé de três meses, Berina Hamidovic.

A bebé nasceu com uma doença congénita, mas salvar-se-ia se fosse tratada fora do país. Só que para sair da Bósnia precisava de ter um número de cidadão – e o sistema que atribui estes números tinha expirado em Fevereiro, devido a uma disputa sobre fronteiras entre cantões. Como essa disputa entre os políticos de grupos étnicos diferentes não se resolveu, Berina Hamidovic acabou por morrer. Uma multidão bloqueou os deputados no Parlamento em Sarajevo, impedindo a sua saída até chegarem a acordo.

O impasse político bósnio revela-se noutro caso com consequências importantes para o futuro do país: a União Europeia tinha imposto uma data limite até Outubro para que fosse alterada a Constituição, em resposta a uma sentença do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que considera os acordos de Dayton discriminatórios porque há postos para os quais só podem ser eleitos muçulmanos, sérvios ou croatas. É a questão Sejdic-Finc – que resulta de uma queixa apresentada pelo judeu Jakob Finci e pelo activista cigano Dervo Sejdic. Mas não houve progresso e assim, a Bósnia Herzegovina não pode iniciar negociações de adesão à UE e perde fundos europeus.

Por isso, as acusações que os cidadãos fazem não são novidade para a UE, os Estados Unidos ou outras organizações que apoiam a Bósnia. “Tenho a certeza que muitos observadores e organizações internacionais sabem que grande parte da elite é profundamente corrupta e que agravou as dificuldades económicas do país por governar mal. Isto é muitas vezes dito no segredo dos gabinetes, mas seria bom que se falasse mais abertamente”, afirma Florian Bieber.

“O actual bloqueio constitucional não é a causa mas antes a consequência dos problemas mais profundos da Bósnia-Herzegovina, como as divisões internas, a indiferença e a irresponsabilidade dos políticos, dos media, dos intelectuais e das organizações não-governamentais deste país”, sublinha Srecko Latal.

Apropriar-se do Estado
“A vigilância internacional prevista pelos acordos de Dayton não permitiu que surgissem figuras políticas com legitimidade para representar os cidadãos”, defende Eric Gordy, que convida a uma reflexão sobre a actuação dos organismos internacionais.

“O Alto Representante pode anular decisões feitas pelos parlamentos e pelos executivos bósnios. Pode demitir pessoas das suas funções, se considerar que estão a actuar de uma forma inconsistente com o estabelecido em Dayton, que aumente as tensões”, explica. O que pode parecer uma forma eficaz de controlo, não o tem sido, explica este especialista na política eslava. “Tem encorajado os políticos bósnios a comportar-se de formas irresponsáveis. Dizem ‘podemos fazer coisas que nunca nos passaria pela cabeça fazer, porque sabemos que se formos longe demais, o Alto Representante vai pôr um travão nisto. E se o fizer, só vai servir para aumentar a nossa popularidade’. Portanto, a vigilância mantém o circuito de más decisões.”

Concluindo: face aos protestos populares, a prioridade é mudar os acordos de Dayton? Não propriamente. “Embora precisem de ser alterados, não é uma tarefa fácil. Mas não acho que reformá-los seja a prioridade. Se não houver vontade política e consenso, nem uma melhor Constituição pode resolver os problemas”, responde Florian Bieber. “Mas sempre que se discute a reforma constitucional na Bósnia, surgem as questões de identidade nacional. Portanto a agenda é facilmente desviada das reformas para o nacionalismo. Por isso, é mais importante focar-se primeiro em apoiar os actores políticos que estão interessados em cooperar e em fazer compromissos do que em mudar o sistema.”

Eric Gordy vai no mesmo sentido, e deixa uma mensagem. “Os diplomatas internacionais na Bósnia falaram sempre em desenvolver a democracia e uma das frases que gostam de usar é que os ‘cidadãos têm de se apropriar do Estado’. Pois agora que os cidadãos estão assumir a posse do Estado, a comunidade internacional devia mostrar-se mais disposta a ouvi-los e não a tentar travá-los.”

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