“Lion” é um daqueles filmes que suscitam vários pensamentos em pessoas que passam muito tempo querendo despistar ou ocultar sentimentos. E por falar neles, se tem uma coisa que brasileiro adora sentir e expressar, isso se chama saudade. É de impressionar, ainda mais as pessoas menos atentas, o fato de que nosso idioma é o único que alcunha o termo e gosta de utilizá-lo numa demanda desmedida. Para ficar mais claro, é só acessar o Spotify e digitar playlists que contenham o termo: até o fechamento deste artigo não conseguimos chegar ao fim da barra de rolagem.

O fato é que sentimos saudades porque sentimos falta e a ausência gera um real incômodo de difícil superação. Embora, com o jeitinho brasileiro de sempre, tentemos de várias maneiras sufocar este sentimento, mesmo quando dizemos que esta dor tem uma verve boa. E cada ser humano tem suas particularidades para lidar com a dor, o afastamento, a saudade. Pensando nisso, “Lion” é uma grande jornada por termos abstratos como saudade, esquecimento, pertencimento e aproveitamento.

Embora não tão perceptíveis, dois conceitos constantes na Sétima Arte são o esquecimento e o pertencimento. Se pensarmos na construção da sociedade pós-moderna e de todos os atributos que a acompanham, perceberemos que estes são dois itens que pairam sobre os indivíduos constantemente. Esquecer parece simples, fácil e a melhor solução, enquanto pertencer requer um esforço maior. Existem momentos em que pertencer é praticamente impossível. Para esquecer, basta um pouco de distração. Para pertencer, é preciso imergir e ser cauteloso para que esse mergulho não cause feridas. É tão mais difícil pertencer, mesmo quando você sente o desejo de estar dentro do mergulho. Talvez seja por isso que quando há envolvimento presente, esquecer o anterior parece fundamental e aproveitar o momento e as oportunidades uma regra bem firmada.

“Lion” traz a história de Saroo, um menino indiano que se perde do irmão mais velho numa estação de trem em Calcutá, sem saber retornar para casa. O garoto enfrenta várias dificuldades na Calcutá em meados dos anos 80, que não difere em termos populacionais da atual, o que é posto na película de maneira sutil. Acompanha-se uma cidade distante, escura, lotada e carente de direitos humanos. As coisas melhoram para Saroo quando ele é adotado por uma família australiana e passar a morar com eles na Tasmânia. Como todas as coisas que ficam adormecidas só necessitam de um insight, aos 25 anos, ele decide buscar uma forma de reencontrar sua família e o caminho de volta para casa.

Como é se sentir perdido? Como é se sentir acolhido e, ao mesmo tempo, não pertencer a nada daquilo? Garth Davis acerta ao delinear a narrativa mergulhando o espectador na caminhada de Saroo. A sensação que deixa é que cada um de nós é um pouco do pequeno menino taciturno, observador e em busca de alguém que o ajude a encontrar o caminho de volta para casa. Mas será que realmente sabemos o caminho de onde o trem veio? A escalação de Sunny Pawar para representar a infância do menino indiano é uma das decisões mais precisas do filme. O ator indiano de oito anos entrega uma suavidade, carisma e olhar de tristeza e motivação que promovem a identificação imediata com a história vista em tela, que por mais absurda que pareça realmente aconteceu e foi documentada no livro “A Long Way Home”, de Saroo Brierley.

Outro nome importante dentro da obra é o de Dev Patel. Conhecido por “As Aventuras de Pi”, o ator se preparou durante oito meses especialmente para conseguir entrar na pele do personagem. Com uma performance corporal muito bem executada, Patel diferencia-se de todas as suas interpretações anteriores. O ator britânico alcança uma maturidade e segurança que são nítidas em seu trabalho. A cada expressão de não pertencimento, a cada tentativa de auto aceitação e de internalização da bagunça de sentimentos que predominam na mente perdida, Patel segura a trama, nos permitindo ler o seu personagem e todas as nuances que o atormentam, simultaneamente,  ele exibe seu amadurecimento como ator.

Claro que não se pode esquecer as presenças marcantes de Nicole Kidman e Rooney Mara: ambas apenas atestam seus talentos e brilhantismo em cena e o quanto excedem expectativas para qualquer produção que estiverem envolvidas.

A composição fotográfica utiliza planos abertos que permitem ao espectador se ambientar no mundo de Saroo, ao mesmo tempo em que preenche a tela com detalhes sobre quem é a personagem e o que permeia seus pensamentos. Há o uso de filtros com tonalidade amarelada para descrever o dia contrastante na Índia e azulada a fim de mostrar as cenas noturnas e internas, estas também são importantes para manter o expectador imerso na cenografia. A composição salienta a magnitude da distância percorrida por Saroo desde quando saiu de casa com o irmão. A montagem também permite essa sacada ao contar a linha narrativa sem o uso de flashbacks e elipses. A forma como a narrativa é transposta e as imagens vagam na mente do indiano dimensionam o nível de incomodo que a ausência e o não pertencimento entrelaçam-se a sua existência.

“Lion – Uma Jornada Para Casa” representa, de certa forma, a nossa própria caminhada em busca do lar e de nós mesmos. O filme se transforma em um estudo de personagem delicado e rico de sutilezas quando referendadas as relações que estabelecemos com o que nos circunda seja no presente ou no passado. No caso de Saroo, o esquecimento, as ausências e a saudade o transformaram em um ser humano admirável que emerge com a identificação total do público.” Lion” nada mais é do que a nossa própria busca pelo que quer que seja que procuramos, claro que podemos contar sempre com uma boa ajuda, nem que seja do Google Earth.