Perguntas & respostas: violência sexual em conflitos armados

22 setembro 2016

Tragicamente, a violência sexual é predominante em muitos conflitos contemporâneos. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) está comprometido em aumentar os seus esforços para prevenir esta devastadora violação e prestar assistência às vítimas. O presente artigo analisa a natureza da violência sexual, as necessidades das vítimas, o trabalho do CICV em relação à prevenção, proteção e assistência, bem como a base legal para a proibição.

Responder às necessidades das vítimas de violência sexual

Historicamente, a violência sexual tem sido generalizada nos conflitos armados, vista muitas vezes como uma consequência inevitável da guerra. Persiste como um fenômeno devastador com consequências prejudiciais para as vítimas - mulheres, homens, meninos e meninas - assim como para as suas famílias e comunidades inteiras. Além disso, as violações permanecem largamente sem serem denunciadas, não sendo calculadas em termos reais da sua prevalência e consequência. A resposta humanitária às diversas necessidades das vítimas continua insuficiente.

Apesar dos desafios, o CICV acredita firmemente que a violência sexual em conflitos armados possa ser evitada. Mediante uma resposta abrangente que inclui assistência, proteção e prevenção, busca garantir que as necessidades das vítimas sejam atendidas e que atividades para prevenir esses crimes sejam realizadas. O CICV se comprometeu a aperfeiçoar a sua resposta nos próximos quatro anos com a ampliação e expansão dos seus programas e o fortalecimento da sua capacidade de abordar este fenômeno complexo e delicado.

1. O que é violência sexual?

O termo "violência sexual" é empregado para descrever atos de natureza sexual impostos por força, ou coerção, como o medo de violência, coação, detenção, pressão psicológica ou abuso de poder dirigido contra qualquer vítima - homem, mulher, menino ou menina. Aproveitar-se do ambiente coercitivo ou da incapacidade das vítimas de dar um consentimento genuíno é também uma forma de coerção. A violência sexual também compreende: estupro, escravidão sexual e prostituição, gravidez ou esterilização forçada, ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável.

Esses atos raramente ocorrem isoladamente. Eles fazem parte de um padrão de abuso e violência que inclui assassinato, recrutamento infantil, destruição de bens e saqueio. A violência sexual também pode ser utilizada como represália para provocar temor, ou como forma de tortura. Igualmente pode ser usada sistematicamente, como método de guerra, com a finalidade de destruir o tecido social.

2. Quem é afetado e como?

Os conflitos armados e outras situações de violência afetam de modo distinto as mulheres, homens, meninas e meninos. Certas pessoas são mais vulneráveis à violência sexual que outras. Incluem as pessoas deslocadas, migrantes, viúvas, mulheres chefes de família, detidos, pessoas associadas com as forças armadas e grupos armados ou que pertençam a um grupo étnico específico. A violência sexual é também cometida contra homens e meninos e, em alguns contextos, a detenção pode torná-los particularmente vulneráveis.

A violência sexual pode causar severos traumas físicos e psicológicos, infecção com o HIV e, algumas vezes, morte. Além disso, as vítimas com frequência enfrentam uma vitimização dupla: não apenas sofrem lesões e traumas potencialmente perigosos e duradouros, mas também a estigmatização e a rejeição pelas suas famílias e comunidades.

Embora seja onipresente em muitos conflitos armados, frequentemente permanece invisível. Sentimentos de culpa e vergonha, medo de retaliação ou tabus ao redor do assunto podem impedir que as vítimas se apresentem. Como consequência, a real extensão do problema não é conhecida. Por estes motivos, pode ser muito difícil chegar até as vítimas e lhes prestar apoio.

3. Quais são as necessidades das vítimas de violência sexual?

Acima de tudo, as vítimas de violência sexual devem ser tratadas com humanidade e pleno respeito pela sua privacidade, mantendo a total confidencialidade ao responder às suas necessidades. Garantir a segurança das vítimas e prevenir futuros ataques são também muito importantes. O medo à represálias e ataques pode impedir que as vítimas se apresentem, ou coloca as que denunciam em uma situação de segurança precária, tornando-as mais vulneráveis aos ataques.

A violência sexual é uma emergência médica, podendo resultar em graves consequências físicas e psicológicas para as vítimas. É crucial que elas tenham acesso desimpedido à assistência à saúde em tempo e forma, dentro das 72 horas seguintes, para reduzir o risco de doenças e infecções sexualmente transmissíveis e HIV e para obter o acesso a métodos contraceptivos de emergência segundo as leis nacionais.

Quando o estupro causa uma gravidez indesejada, as vítimas podem buscar práticas inseguras para terminar com ela, colocando a sua saúde e vida em risco. Um aborto realizado em condições inseguras é uma importante preocupação de saúde pública. As crianças nascidas em razão de um estupro, e as suas mães, são também altamente vulneráveis, e podem sofrer um maior risco de exclusão na sua comunidade. Essas crianças também pode estar sob risco de infanticídio ou outras formas de violência.

4. Quais são as barreiras que podem enfrentar as vítimas para obter assistência à saúde?

O acesso das vítimas à assistência à saúde integral, inclusive o apoio psicossocial, é essencial na fase aguda e no longo prazo. Ainda assim, em situações de conflitos armados, a obtenção do acesso à assistência à saúde é, com frequência, um desafio significativo. Em muitos casos, as vítimas não sabem que devem buscar cuidados médicos urgentes ou não conseguem o acesso a eles por medo, insegurança ou falta de um estabelecimento de saúde adequado. A infraestrutura de saúde pode ser limitada, danificada ou destruída por causa do conflito, impedindo, portanto, o acesso das vítimas ao tratamento.

Elas enfrentam, muitas vezes, grandes riscos à sua segurança ao tentar chegar até os serviços de saúde. Podem ter de viajar longas distâncias em um ambiente inseguro para buscar ajuda, possivelmente encontrando estruturas e serviços de saúde que não estão mais disponíveis em decorrência do conflito. Devido à natureza complexa dos conflitos armados, os atores humanitários podem enfrentar desafios para chegar até as vítimas e prestar o atendimento e apoio necessários.

5. O que se pode dizer sobre as outras necessidades que não são de saúde?

Além da assistência à saúde, existem uma série de outros elementos que devem ser integrados à resposta humanitária. É importante garantir que as vítimas de violência sexual sejam protegidas de futuras violações mediante atividades de conscientização e redução de riscos.

As vítimas que queiram obter justiça precisam receber informações completas sobre o apoio disponível e protegidas de represálias, exclusão e riscos à segurança. É crucial garantir que as vítimas não sejam colocadas em risco ao iniciar um processo legal.

Em muitas circunstâncias, as vítimas podem se deparar com grandes desafios para se reintegrarem na comunidade. A educação é importante para evitar a estigmatização, rejeição e exclusão das vítimas e dos seus filhos. Os parceiros, filhos e outros membros da família também precisam de apoio, orientações e cuidados.

As pessoas deslocadas ou que perderam os seus meios de subsistência em consequência da violência sexual necessitam com frequência de abrigo e apoio econômico para reconstruir as suas vidas.

6. Como o CICV lida com as necessidades das vítimas de violência sexual nos seus programas e atividades?

Como uma organização humanitária, o CICV se empenha em lidar com as causas e os efeitos da violência sexual ao responder às necessidades dos homens, mulheres, meninas e meninos afetados. As suas atividades abrangem a prestação de assistência à saúde, proteção, assistência, conscientização e prevenção.

Dependendo do contexto, o CICV pode oferecer assistência à saúde diretamente ou pode referir as vítimas aos serviços existentes para o atendimento apropriado, como prevenção de doenças e tratamento de lesões e doenças, e assegurar serviços de saúde reprodutiva segundo a legislação nacional. A organização muitas vezes apoia as estruturas, transporte e profissionais de saúde com relação à capacitação, infraestrutura e material médico. Além disso, se esforça para integrar o apoio médico e psicológico nas atividades de saúde para as vítimas de violência sexual. O CICV possui diversos programas que prestam assistência e apoio para lidar com as necessidades psicossociais.

A organização oferece apoio econômico para ajudar as vítimas a reconstruírem as suas vidas. Isso pode incluir comida e utensílios domésticos, abrigo, assistência para desenvolver novas fontes de renda ou ajuda financeira para que possam se locomover para obter atendimento médico e psicológico.

Em consulta com as comunidades locais, o CICV trabalha para conscientizar, identificar fatores de riscos e elaborar estratégias de proteção contra a violência sexual. Por exemplo, o CICV pode fornecer às mulheres fornos com baixo consumo de combustível para minimizar o tempo que elas gastam coletando lenha, uma atividade que as coloca em risco de violência sexual. Do mesmo modo, ajuda comunidades a cavar poços mais próximos aos povoados para reduzir os riscos que as mulheres correm ao buscar água.

7. O que diz o Direito Internacional Humanitário sobre a violência sexual em conflitos armados?

O estupro e outras formas de violência sexual, quando cometidos no contexto de um conflito armado, seja internacional ou não internacional, constituem uma violação ao Direito Internacional Humanitário (DIH).

Todas as partes em um conflito armado devem respeitar a proibição de violência sexual. Todos os Estados possuem a obrigação de processar os perpetradores.

O estupro e outras formas de violência sexual estão proibidos segundo as normas existentes em tratados (Quarta Convenção de Genebra e Protocolos Adicionais I e II) e as normas consuetudinárias aplicáveis em conflitos armados internacionais e não internacionais.

8. A violência sexual é um crime?

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional inclui estupro e outros tipos de violência sexual na lista dos crimes de guerra e dos atos que constituem crimes contra a humanidade quando cometidos como parte de um ataque generalizado e sistemático dirigido contra a população civil.

O estupro e outras formas de violência sexual também podem constituir outros crimes internacionais. O estupro poderia ser considerado tortura, por exemplo, quando for infligido intencionalmente por um agente estatal para obter a confissão da vítima.

A violência sexual também pode constituir um ato de genocídio, por exemplo, quando for uma medida imposta com a intenção de evitar nascimentos em um grupo, com a mutilação sexual ou a esterilização, por exemplo. O estupro também pode ser uma medida com a intenção de evitar nascimentos: em sociedades patriarcais, quando uma mulher fica grávida de um homem de outro grupo étnico, com o objetivo de que ela tenha um filho que consequentemente não pertencerá ao seu grupo.

Todos os estupros cometidos durante e em relação com um conflito armado constituem um crime de guerra e devem ser processados. Além disso, a violência sexual é, em todas as circunstâncias, uma violação dos instrumentos internacionais de direitos humanos e de muitas normas do direito nacional, religioso ou tradicional.

9. E os que seriam responsáveis pela violência sexual?

O CICV insta todas as partes em conflitos armados a cumprirem com a sua obrigação perante o Direito Internacional Humanitário (DIH) de proteger as mulheres, homens, meninas e meninos dos atos de violência sexual e garantir o acesso desimpedido à assistência à saúde para todas as vítimas de violência sexual.

A organização lembra todas as partes em conflitos armados que todas as formas de violência sexual são proibidas segundo o Direito Internacional Humanitário (DIH), instando-as a integrar esta proibição na legislação nacional, códigos militares e manuais de treinamento dos portadores de armas. Realiza palestras para os portadores de armas em todo o mundo sobre a proibição de violência sexual, adaptando-as de acordo aos padrões de violações de que é testemunha em diferentes contextos.

O estupro e outras formas de violência sexual que passam a ser considerados sérias violações do DIH acarretam responsabilidade penal individual e devem ser levados a julgamento. Todos os Estados são obrigados a incluir essas violações no direito interno de cada país e a investigar e processar de modo efetivo todos os casos de violência sexual.

Além disso, em diálogo confidencial com as autoridades ou grupos armados, o CICV leva as suas preocupações sobre os fatos observados ou alegados relativos à ocorrência de violência sexual. Inclui as consequências desses atos para as vítimas e comunidades, as suas consequências legais e penais e possíveis medidas para identificar e sancionar os perpetradores, proteger a população e diminuir o risco para esses crimes.

10. Como o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho trabalha em conjunto nessa questão?

Sempre que possível, o CICV trabalha em cooperação com os prestadores locais de serviço e os parceiros dentro do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (Movimento), como as Sociedades Nacionais. Assim como com outros temas, os diferentes componentes do Movimento assumem funções distintas mas complementares em relação às questões de violência sexual e de gênero. De acordo com o seu mandato, o CICV trata de aspectos específicos dessas questões, concentrando-se na violência sexual em situações como os conflitos armados. A Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (FICV), e cada Sociedade Nacional, tem um enfoque mais amplo sobre a violência sexual e de gênero, envolvendo-se, por exemplo, na prevenção da violência em contextos de desastres naturais.

Mais recentemente, em dezembro de 2015, o CICV e a FICV submeteram em conjunto a minuta de resolução "Violência sexual e de gênero: ação conjunta sobre prevenção e resposta" na 32a. Conferência Internacional da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho. A resolução adotada por consenso pela Conferência Internacional (que reúne os Estados Partes das Convenções de Genebra de 1949 e os componentes do Movimento) condena veementemente a violência sexual e de gênero em todas as circunstâncias, em especial durante conflitos armados, desastres e outras emergências.

No seu preâmbulo, apresenta as preocupações comuns a esse tipo de violência durante conflitos armados, desastres e outras emergências. Por exemplo, reconhecendo de que essa violência é com frequência invisível porque impedimentos como tabus e medo fazem com que as vítimas/sobreviventes não denunciem, ressalta que é importante trabalhar para a prevenção e eliminação da violência e preparar respostas adequadas às necessidades das vítimas/sobreviventes antes que surjam os incidentes específicos. Além disso, reconhece que, embora as mulheres e meninas sejam afetadas de modo desproporcional, os homens e meninos também podem ser vítimas. A primeira seção da resolução focaliza na violência sexual em conflitos armados, refletindo este aspecto particularmente alarmante, e na forte proibição dos atos de violência sexual nessas situações conforme o Direito Internacional Humanitário (DIH). A segunda seção trata a violência sexual e de gênero em desastres e outras emergências. Por fim, a terceira resolução destaca as medidas tomadas pelos componentes do Movimento, cooperação e parcerias.

No terreno, o CICV, a FICV e inúmeras Sociedades Nacionais implementam diversas atividades que variam desde a prevenção, conscientização, desenvolvimento de capacidades e diplomacia humanitária até apoio médico, psicossocial, econômico e legal. Em todo o Movimento, desde o Conselho de Delegados de 2013, foram elaboradas definições comuns para a terminologia básica e foi realizada uma pesquisa sobre as iniciativas do Movimento, boas práticas e desafios e lacunas relativos à violência sexual e de gênero em conflitos armados e desastres. As principais constatações do levantamento foram apresentadas em um relatório ao Conselho de Delegados em 2015. Também foi realizada uma pesquisa sobre ampliação de políticas, promoção e atividades operacionais nos casos de violência sexual em desastres.