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RITA FERREIRA/OBSERVADOR

RITA FERREIRA/OBSERVADOR

O tesouro do Socorro que revela segredos do terramoto

Um tesouro escondido numa arrecadação bolorenta. Um padre que o descobriu. E os segredos que se revelam ao ler os documentos que contam histórias de Lisboa, antes e depois do terramoto.

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Foi num jantar de verão, com os primos e a mãe, que apareceram os primeiros sintomas. A comida não lhe sabia bem. A voz fraquejava. Nos dias que se seguiram, perdeu por completo o paladar e depois a fala. Foi então que decidiu ir ao médico. Estava de férias, não tinha trabalho nas seis paróquias que lhe consomem o tempo e a mente, mas raramente a saúde. “O médico disse-me que eu tinha uma inflamação enorme na garganta, deu-me um antibiótico e vaticinou: se não melhorar em quinze dias volte cá”. O padre Edgar Clara voltou. E tomou mais duas caixas de medicamentos até ficar bem.

Má sorte teve também uma das senhoras que andava a ajudar na limpeza do Coleginho. Ficou com uma inflamação nos olhos e teve de ir ao hospital.

Mas as mazelas tinham uma explicação clara e um propósito quase nobre: resgatar documentos que se julgavam perdidos e que desvendam muitas histórias da cidade, antes e depois do terramoto de 1755. Um tesouro. 

Recuemos no tempo e no espaço, de volta ao ano em que o padre Edgar Clara chegou à paróquia do Socorro, em Lisboa, mais exatamente à Rua do Marquês de Ponte de Lima, em plena Mouraria, e entrou pela porta da sacristia da Igreja do Coleginho. Foi em 2011.

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tesouro socorro,

O padre Edgar Clara é responsável por seis paróquias em Lisboa

“A primeira coisa que fiz quando entrei para cá é o que faço em todas as igrejas: limpezas. Tudo o que seja do século XX não presta, vai tudo para o lixo. São madeiras que não prestam, que só estão a criar bicho, uma série de porcarias que não nos interessam, tecidos, bugigangas Tudo o que é porcarias do século XX mando para o lixo, não têm valor artístico, não são obras de arte, não têm nada que se possa dizer que se deva preservar e, pelo contrário, estão a prejudicar as obras de arte que temos aqui em casa”, diz sem hesitar Edgar Clara.

Percebe-se melhor esta quase “fúria” de limpeza se contarmos que a conversa decorre na sacristia do Coleginho. Uma sala um pouco escura, com painéis de azulejos do século XVIII (pré-terramoto) a cobrirem de alto a baixo três das paredes. Numa delas existe um móvel de madeira que vai de uma ponta à outra. Não se sabe de que ano é, mas a robustez do dito deixa antever que seja coisa antiga. Do outro lado, mais um móvel onde se guardam os paramentos. Por cima, dois espelhos e um crucifixo. Ao meio, uma mesa escura de madeira maciça.

“Começo sempre pelas coisas mais sensíveis, que são os tecidos. Já não se usavam os paramentos antigos, só se usavam os paramentos do século XX. Eu deixei de usá-los e passei a usar os antigos, porque estão muito bem conservados. Pedi às senhoras para trazerem lençóis de algodão e com esses lençóis fiz separadores nos paramentos. Assim estão todos acondicionados”, explica.

Num buraco, dentro de caixas de cartão, o tesouro

Passou um ano até que Edgar Clara atravessasse a parte do claustro pertencente à paróquia de Nossa Senhora do Socorro — agora tapado com vidro, porque os outros três quartos são da Santa Casa da Misericórdia —, passasse a porta que dá acesso à capela, virasse à esquerda e subisse umas escadas de madeira que vão dar a um andar cimeiro. Ali, logo do lado esquerdo, estava uma porta.

A sala onde foram encontrados os livros

RITA FERREIRA/OBSERVADOR

Calçou umas luvas, colocou uma máscara e mandou tirar a porta. O cheiro a humidade batia certo com o estado em que estavam as paredes daquela divisão que já tinha tido uma janela entretanto cimentada. Deixou respirar o mais que pôde até se atirar às prateleiras atulhadas com caixas e mais caixas. “Tirámos tudo para fora. Fui encontrando coisas do século XX, coisas que não prestam e ia metendo de lado. No meio disto tudo dizem-me: ‘Padre, estão aqui uns livros'”.

O que é um Rol de Confessados?

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Todos os anos, pela quaresma, os padres elaboravam um livro chamado Rol de Confessados. Estava dividido por ruas, depois por portas e depois por casas. Ali ficavam registados os agregados familiares dos católicos. A informação que continham era simples: se tinham pago a dízima, se se tinham confessado e se tinham comungado. Mas a verdade é que, ao ler estes documentos, descobrem-se muitas outras coisas, que permitem traçar um retrato da cidade e de quem a habitava.

Era final de julho, estava calor na Mouraria, o padre Edgar quase a ir de férias. “Começo a folhear os livros e esses livros eram, nada mais, nada menos, que róis de confessados que iam de 1612 até 1856”.

Estavam todos dentro de caixas de cartão, num ambiente propício à degradação. “Tirámos tudo, limpámos o pó superficial [o pó que o deixará doente] e colocámo-los num armário noutra sala mais arejada”, explica. E não foi preciso grande ciência para Edgar Clara perceber o que lhe tinha caído nas mãos: “Estava escrito nos livros ‘Rol de Confessados’ e vi que tinham valor por albergarem o período antes e depois do terramoto. Há muito poucas coisas que tenham sobrevivido ao terramoto, principalmente documentos. A capela desta igreja, por exemplo, caiu. Estes livros eram da igreja do Socorro e foram trazidos para aqui quando ela foi demolida, em 49″.

Em busca de D. Jayme

A notícia de que tinham sido encontrados estes documentos espalhou-se e quando chegamos à igreja do Coleginho para falar com o padre Edgar já lá estão três pessoas do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, que analisam a melhor forma de se conseguir arranjar meios para tratar devidamente todo aquele espólio. Os livros deveriam ser limpos — expurgados é o nome certo — e acondicionados numa atmosfera protetora. Mas meses passaram e eles continuam no exato local onde o padre os deixou depois de lhes limpar o pó “com a ajuda de uma técnica de conservação de têxteis que explicou como se devia fazer”.

Já houve outros contactos com a Torre do Tombo, que está a tentar arranjar uma solução, uma vez que, segundo o padre Edgar, “o Patriarcado já não tem espaço para acolher mais documentação”.

É nesta estante que agora estão os documentos, à espera de serem tratados

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Subindo à sala onde se encontram os livros, os técnicos da CML falam da necessidade de haver proteção para aquele espólio, um sentimento talvez despertado pelo barulho que vem da rua e que indica a presença de polícias que, mais uma vez, estão a fazer uma rusga em casas da zona. A dez metros da porta de entrada da igreja, existe, aparentemente, um ponto de venda de droga.

O padre descansa-os. “Isto está cheio de alarmes. Às vezes ligam-se às duas da manhã e afinal são só gatos”.

Mais alguém bate à porta. Desta vez é Cristina Torres, investigadora, que, ouvindo falar dos documentos encontrados — e sem saber das três caixas de antibióticos que o padre tomou à custa deles — pede para mexer nos livros. Procura um tal de D. Jayme de La Té y Sagáu que terá vivido por ali, perto do Hospital de São José.

Sem luvas e sem temor — e sem saber que nesta altura algumas das pessoas na sala já não aguentam com comichão nos olhos e a garganta seca — parte em busca do objeto do seu trabalho.

D. Jayme de Late e Sagau vivia na Rua dos Livreiros — que já não existe — do lado esquerdo. Com ele habitavam D. Josefa Falcata (esposa), D. Maria de Athaide, Inês Falcata, Joana Maria, Maria, Manuel de Sousa, Domigues Álvares e António Correia.

Com muito cuidado vai tirando alguns livros da estante e começa a folheá-los enquanto conta a história do espanhol que, em 1715, teve um privilégio real para imprimir e vender livros de música, coisa nunca antes vista na Lisboa daqueles tempos. Cristina precisa de confirmar se ele viveu ou não por ali. E no Rol da Confissão da Paroquial Igreja de Nossa Senhora do Socorro do ano de 1721 encontra-o.

D. Jayme de La Té y Sagáu vivia na Rua dos Livreiros — que já não existe — do lado esquerdo. Com ele habitavam D. Josefa Falcata (esposa), D. Maria de Athaide, Inês Falcata, Joana Maria, Maria, Manuel de Sousa, Domigues Álvares e António Correia. Trabalho completo.

A investigadora encontrou o que procurava

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Mas nem Cristina Torres nem mesmo o padre Edgar olham para estes documentos com os olhos de Delminda Rijo, investigadora e especialista em demografia histórica. Os róis de confessados são como que os seus livros de cabeceira. Estar sentada com ela, a folhear aqueles livros que o padre Edgar encontrou, quase que dá para fazer nas nossas cabeças um mapa animado do que era a Mouraria naqueles anos, antes e depois do terramoto.

As ruas que já não existem, os ricos, os pobres e as prostitutas

Delminda Rijo calça as luvas e coloca uma máscara antes de tocar nos livros que agora tem à frente. É especialista em demografia histórica e trabalha no Gabinete de Estudos Olisiponenses da Direção Municipal de Cultura da autarquia de Lisboa.

Dicionário

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Desobriga – certificado de que foram cumpridas as obrigações básicas do católico, a saber, pagar a dízima, confessar-se e comungar pelo menos uma vez por ano

Visitada – diz-se das pessoas visitadas aquelas a quem a misericórdia entregava alimentos e medicamentos, podendo perceber-se por aqui o índice de pobreza

Visitação – feita pelo bispo que ia às igrejas ouvir um determinado número de pessoas selecionadas que tinham por obrigação contar tudo o que sabiam sobre pessoas que iam contra a lei da igreja

Revéis – depois do Rol de Confessados era elaborado um Rol de Revéis, aqueles que não tinham cumprido com a desobriga. Caso não apresentassem provas de que tinham confessado e comungado era colocados numa lista para excomunhão e os seus nomes anunciados na igreja

Antes já nos tinha explicado, no bonito Palácio Beau Séjour, em Benfica, o que são e como podem ser utilizados os róis de confessados para estudar a cidade — na sua toponímia — e a população residente. Dependendo do grau de pormenor que cada padre decidia imprimir nos seus registos anuais, é possível obter mais ou menos informação.

“Depende do padre que os faz, porque alguns são muito detalhados e há outros em que é tudo muito sumário”, explica ao Observador. “Com os que não têm detalhe quase nenhum, o que ficamos a saber? Sabemos o quantitativo populacional e a quantidade de fogos que existiam por rua, o que já é uma boa informação. Quando trabalhamos vários róis conseguimos saber qual era o percurso que o padre fazia, porque o que se pensa é que os padres iam de casa em casa fazer a desobriga”.

Nestes livros, contudo, há gente que falta. Mesmo sendo católica, mesmo vivendo nas casas visitadas pelo padre. “Esta população que consta aqui são tudo pessoas maiores de sete anos [que ainda não tinham obrigações à luz da igreja]. É uma lacuna que cobrimos com os registos de batismo, mas ainda assim só conseguimos fazer uma aproximação à população total, porque morriam muitas crianças antes do batismo, por exemplo, ou até atingirem os sete anos”.

Os livros encontrados têm registos que vão de 1612 a 1856

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De regresso ao Rol de Confessados que Delminda Rijo tem à frente e que data de 1704. Vai folheando e tirando notas: “Tem indicada a relação laboral quando se trata de oficinas e criadagem, percebe-se quando é um fogo que tem uma unidade laboral”. Ora aí está a primeira informação mais relevante. Até porque, explica, “sabe-se que aqui nesta zona vivia uma série de artesãos franceses que vieram dar formação para fazer chapéus”. E os apelidos que vão surgindo não enganam sobre a nacionalidade dos habitantes.

Depois, há o registo das ruas que, ou desapareceram, ou mudaram de nome. “A Rua Direita da Mouraria, que está aqui descrita, não existe já assim, nem de nome, nem enquanto configuração. Mas era, como todas as ruas direitas, a rua principal de determinado local”, explica. Vai folheando e encontra a Rua do Benformoso, “uma rua extremamente importante, porque era por onde passava a procissão”. E nesta rua, encontram-se agregados com algum poder monetário. Como se sabe isso? Pelo facto de o nome ser precedido por D., por exemplo, D. Manuel da Rocha, que tinha pelo menos dois escravos, Manuel e Maria, que têm à frente do nome a abreviatura “esc”. “Sabemos que estes eram escravos de primeira geração, chegavam e eram vendidos em praça. Só mais tarde, quando eram adultos e se batizavam, é que adotavam o nome dos donos”, sublinha Delminda.

Símbolos

Há vários símbolos nos róis de confessados que é preciso saber interpretar.

// – cada traço significa a confissão e a comunhão

ø – pagamento da dízima

m – mulher

f – filho

ap – aprendizes

off – oficial

esc – escravos cristãos

Avançamos para a Rua de Trás de São Domingos. Já tinha ouvido falar? Tinha por exemplo um fogo onde viviam 20 pessoas, o que significa que era uma casa de gente abastada. Delminda vai percorrendo com o dedo enfiado na luva os nomes e os símbolos. “Aqui tinham guardas, tinham os mochilas [pessoas que carregavam coisas] e homens de pé [uma espécie de seguranças privados]. Lisboa era uma cidade muito violenta naquela época.”

Outra rua fácil de identificar é a Rua Nova da Palma, que agora se chama apenas Rua da Palma e que desemboca na praça do Martim Moniz, que não existia. “Era Rua Nova da Palma porque tinha sido aberta recentemente, para fazer a ligação dos Anjos até aqui à Mouraria. Era uma das entradas da cidade de Lisboa”. E já na altura, um local mal afamado, onde existiam as chamadas Casas de Alcoice — casas pequenas de prostituição, “que ficavam na zona de transição entre Santa Justa e a Mouraria”. Como se sabe isto? Não pelos Róis de Confessados, mas pelas afamadas “visitações”.

Cenas da vida privada

Ainda não se sabe se naquele enorme armário da sacristia do Coleginho estão registos de visitações — porque os documentos são tantos e tão frágeis que nem o padre Edgar se atreve a mexer neles —, mas se estiverem poder-se-á descobrir muita informação suscetível de encher páginas de revistas cor de rosa, assim elas existissem na altura.

“É na visitação que encontramos factos pitorescos e até bastante cómicos. É muito engraçado porque nos dá uma dimensão da intimidade daquelas pessoas que fugiam à regra”, revela Delminda. Ou que, pelo menos alguém dizia que fugiam, porque, verdade seja dita, o sistema para encontrar revéis não era propriamente o mais factual do mundo.

"A visitação era feita pelo bispo, que ia com um notário às igrejas. Escolhiam duzentas pessoas que eram convocadas para denunciar tudo o que sabiam que estava contra a lei. Nomeadamente os amancebamentos, quem trabalhava em dias santos, todo o tipo de denuncias de fiéis incumpridores. Depois era feita uma lista dos indivíduos, alguns eram presos, outros pagavam multas."
Delminda Rijo, especialista em demografia histórica

“A visitação era feita pelo bispo, anualmente, às igrejas. O bispo ia com um notário e recebia pessoas que eram pré-selecionadas dos róis de confessados. Escolhiam por exemplo duzentas pessoas que durante uma semana eram convocadas para irem à igreja e tinham que denunciar tudo o que sabiam que estava contra a lei católica. Nomeadamente os amancebamentos, quem trabalhava em dias santos, todo o tipo de denúncias de pessoas que eram fiéis mas estavam a ir contra a norma instaurada. Tudo era registado e depois era feita uma lista dos indivíduos: alguns eram presos, outros pagavam multas.”

Barracas e galegos que dormiam de pé

Uma das raridades deste “tesouro” descoberto pelo padre Edgar Clara é precisamente o facto de existirem naquela sala róis de confessados, da mesma zona, antes e depois do terramoto. E isso permite saber um sem número de coisas. A começar pelos dados estatísticos puros e duros.

No final de cada Rol de Confessados, o padre faz um registo final. No livro de 1753 lê-se que na freguesia do Socorro existiam 1368 fogos, pessoas para comunhão eram 5555, havia 186 menores e 55 sacerdotes. Em 1757, dois anos após o terramoto, a mesma freguesia tinha 840 fogos (desapareceram quase mil habitações), 3215 pessoas maiores e 96 menores. E o padre acrescentava: “Freguezes em barracas fora da freguezia – 930”.

Planta da cidade de Lisboa, provavelmente de 1780, já após o terramoto

D:R.

Ao percorrer nos livros as ruas que restaram, porque o terramoto fez com que várias desaparecessem, há outro dado curioso. A meio de uma rua — o nome de cada uma está escrito no cimo de cada folha — surgia a designação “Barracas”, algo que não existia nos livros anteriores ao terramoto. Noutras folhas, em vez de as pessoas estarem agregadas por fogos, estavam em listas de “Moços de colégio e trabalhadores”. E a Rua Nova da Palma, que em 1757 já não era tão nova assim e passou a designar-se Rua da Palma, tinha por habitantes os “Galegos”, cujo nome figurava debaixo da anterior designação.

Os galegos vieram em força para Lisboa para a reconstrução da cidade. Quando chegaram dormiam em pé, atados a umas cordas para não caírem. Organizavam-se em bandos e trabalhavam pela cidade. Entretanto enriqueceram, investiram e, claro, arranjaram casas”, explica Delminda Rijo. Terão passado a dormir deitados como os comuns mortais.

Os marqueses que ficaram sem casa

Se a maioria das pessoas vivia do lado esquerdo ou direito de determinada rua — nos róis mais recentes até já se encontram números de portas — havia aqueles cuja moradia era de tal forma imponente que nem rua nem lado nem número. Era “A Casa do Marquês de Alegrette”, neste caso, morador da freguesia do Socorro. Em 1704, vivia naquela casa meia centena de pessoas.

Planta da cidade de Lisboa em 1650

D.R.

No primeiro lugar da lista elaborada pelo padre aparece o senhor Marquês Manuel Telles da Silva, que por esta altura já havia enviuvado, uma vez que em segundo lugar surge o Conde Fernando e em terceiro a filha D. Isabel. Em quarto o Conde de Villa Mayor, “provavelmente genro”. Passado o núcleo familiar, segue-se uma série de mais de uma dezena de Donas, que deveriam ser aias e camareiras. Há depois um capitão e do número 16 ao 29 da lista são todos criados. Agregada a esta casa aparece um outro fogo encabeçado pelo filho do Marquês, o Conde de Tarouca, que ali vivia com mais um sem número de gente.

No Rol de 1753, lá continuava a casa do Marquês de Alegrette, com os seus sete sacerdotes. Mas de pouco lhe valeram as rezas. O terramoto não escolheu raça nem credos, nem tão pouco dotes e títulos e o palácio ficou muito danificado. No Rol de 1757 já não há rasto do Marquês e da sua prole. “Eles foram viver para outro local e ao que se consegue perceber, alugaram o que restou do palácio a outras pessoas”, explica Delminda Rijo. De facto, o palácio foi parcialmente reconstruído, mas perdeu a sumptuosidade de outros tempos. Acabou por ser dividido e ocupado por estabelecimentos industriais e comerciais e habitado por pessoas de poucas posses.

A bomba

O espírito investigador do padre Edgar — que no século XXI já não tem de fazer róis de confessados nem chamar pessoas para visitações — levou-o a outra descoberta. Ou melhor, a descoberta e meia.

O Coleginho, assim é conhecido o Colégio de Santo Agostinho de Lisboa, foi a primeira casa que os Jesuítas tiveram no mundo inteiro, conta o padre Edgar. D. João III, precisando de gente para evangelizar o Oriente, pediu a Inácio de Loyola 12 dos seus padres, ao que o fundador da Companhia de Jesus lhe terá respondido: “Nós ainda só somos seis, portanto mando-te só dois”. Vieram Simão Rodrigues e Francisco Xavier. “São Francisco Xavier celebrou aqui a última missa antes de ir para a Índia”, conta o padre Edgar.

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Anos mais tarde, os Jesuítas passaram para o edifício onde é agora o Hospital de São José e no Coleginho instalaram-se os Agostinhos, que depois se mudaram para a Graça, dando lugar aos Hospitaleiros. A Ordem de São João de Deus esteve na Rua do Marquês de Ponte de Lima um ano apenas. Veio a expulsão das ordens religiosas e em 1834 o edifício ficou afeto à defesa. Mas não todo o edifício.

“Este bocado ficou sempre da paróquia”, explica o padre Edgar. O “bocado” é a capela, a sacristia, um ângulo dos claustros onde estão sepultados os irmãos e ainda umas pequenas dependências no andar de cima. Tudo isto ficou registado numa escritura de 12 de outubro de 1710, celebrada entre a irmandade de Santo Agostinho e os padres do Coleginho.

Com a implantação da República, vieram tempos conturbados para a igreja católica. Ali, encostados aos militares, os padres foram intimados a abrir aquela que é hoje a porta da sacristia, para que religiosos e militares tivessem serventias diferentes.

E foi nessa altura que “sem perda de tempo” a República quis saber dos documentos que atestavam a propriedade daquela parte do edifício. E os padres assim fizeram.

Foi nesta gaveta que foram encontradas as escrituras e a pasta sobre "a bomba"

RITA FERREIRA/OBSERVADOR

Mas os sobressaltos não param e, aqui há uns tempos, o padre Edgar começou a ouvir que o Coleginho ia ser vendido à Santa Casa da Misericórdia. Soaram os alarmes (baixinho, é certo) e a pergunta ficou a matraquear na cabeça do pároco: “O que é que me diz que esta casa é minha?”

Abriu gavetas e armários, um amontoado de pastas em mau estado de conservação, centenas e centenas de papéis, até que encontrou. Encontrou tudo. “Fiquei muito descansado porque encontrei uma pasta onde está toda a troca de correspondência com a República. Em 1912 as finanças notificaram todas as igrejas para provarem que o património que tinham de facto lhes pertencia. Os irmãos chegaram e disseram, ‘não, não, isto aqui é nosso, esta é propriedade privada da irmandade da senhora do Bom Despacho‘. Reuniram toda a documentação e foram entregar tudo ‘a bem da República e a toda a pressa’, era assim que dizia. Mas foram dois anos de negociações porque eles não acreditavam.”

Edgar Clara, com os documentos na mão, descansou. “Claro que nem tive de fazer prova, porque esta é uma República de bem e portanto a República disse, sim senhora, essa parte não é nossa”, conta, com um sorriso.

Mas a conversa republicana não é tema que o padre Edgar aborde de ânimo leve. Porque logo a seguir começa a contar a história que está ali numa pasta, dentro de uma gaveta. A história da bomba que foi colocada na Igreja do Socorro, em 1922, em plena “guerra aberta” entre os republicanos e a Igreja Católica, que se prolongou nos anos seguintes à queda da monarquia. “Encontrei uma pasta que tem toda a documentação sobre isso. Nunca a li lá por dentro. Sei que tem artigos com faturas da reparação dos estragos causados pela bomba. Está numa destas gavetas.”

Levanta-se, abre um dos pesados gavetões do armário da sacristia, aponta para uma pasta atada com um fio, bem grossa, cuja inscrição diz: “Da bomba de 1922”. E fecha a gaveta.

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Não foram, porém, os republicanos que destruíram a Igreja do Socorro. Ela veio abaixo em 1946, em pleno Estado Novo, e foi um dos edifícios sacrificados no plano de demolições da zona do Martim Moniz. O tesouro que o padre Edgar encontrou, que sobreviveu a um terramoto e a uma bomba, veio do local onde hoje se ergue o Centro Comercial da Mouraria.

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