Recordando o Shoá: os esforços do CICV e da comunidade internacional para responder a genocídios

23 janeiro 2020
Recordando o Shoá: os esforços do CICV e da comunidade internacional para responder a genocídios
Crianças sobreviventes de Auschwitz. CC BY-NC-ND/CICV

Pronunciamento de Peter Maurer, presidente do CICV, 28 de abril de 2015, Genebra, Suíça

A história não termina. A história é relembrada, recontada, analisada e discutida, uma e outra vez, e por cada nova geração. Setenta anos é uma vida inteira – um momento apropriado para relembrar os horrores do Shoá (Holocausto) e a liberação dos campos de concentração.

Gostaria de agradecer a todos pela presença aqui esta noite. O meu agradecimento especial ao nosso coanfitrião, o Congresso Judaico Mundial, e o seu presidente Ronald Lauder, ao CEO Robert Singer, a Tom Gal, representante aqui em Genebra, e aos distintos panelistas que aceitaram participar do debate.

Nas últimas sete décadas, deparamo-nos com os detalhes do que se sabia há muito tempo e não se falava por um tempo demasiado longo: o desastre humano sem paralelos do Holocausto, o poder do medo, o perigo da ilegalidade disfarçada como lei, a natureza insidiosa do terror do Estado, a "banalidade do mal" e o fracasso em agir pelos que sabiam.

Nas últimas sete décadas, aprendemos sobre as falhas políticas, morais e profissionais dos sistemas, instituições e indivíduos, que resultaram nesse desastre causado pelo homem e enraizado no que Karl W. Deutsch descreveu, com muita exatidão, como uma "catástrofe cognitiva" – ou, em outras palavras, a incapacidade de muitos contemporâneos de entender a exata natureza do regime nazista.

Nas últimas sete décadas, ouvimos inúmeras versões sobre as justificativas perversas para os horrores do Shoá. Estas foram usadas, antes de mais nada, pelos perpetradores, mas se estenderam ao resto do mundo que ficou imobilizado sem fazer nada. De maneira trágica, os líderes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) fizeram parte dos que ficaram imobilizados, que – quando confrontados com preguntas sobre o silêncio da instituição – defendiam respostas padronizadas a circunstâncias extraordinárias: falar agora seria ineficaz; não mudaria o curso da história; comprometeria o acesso existente às pessoas necessitadas; refletiria pessimamente na neutralidade e imparcialidade da organização, etc... Na base das justificativas, encontravam-se profundos mal-entendidos sobre o caráter do sistema e a natureza do terror. O CICV não percebeu o que era a Alemanha Nazista. Ao contrário, a organização manteve a ilusão de que o Terceiro Reich era um "parceiro regular", um Estado que ocasionalmente viola as leis, não diferente de qualquer outro exército na Primeira Guerra Mundial, empregando, às vezes, meios e métodos ilegais de guerra.

Todos sabemos que o Shoá foi um momento de definições para o mundo, para a humanidade, para a comunidade judaica e para as relações internacionais. Formou e aprofundou as expectativas sobre as políticas públicas, em inúmeros países e nas relações internacionais, com relação às obrigações e responsabilidades morais dos indivíduos. Como historiador, passei muitos anos estudando alemão e política europeia dos anos 1930 e 40, tentando entender a dinâmica de poder e dos regimes totalitários, assim como o colapso da civilidade. Como diplomata suíço, vivi as fortes tensões entre a verdade histórica e a política das justificativas e como presidente do CICV me pergunto, com frequência, como o desastre do passado se vincula com a violência do presente.

Como consequência do Shoá e da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional adotou a Quarta Convenção de Genebra com o foco na proteção dos civis, uma novidade em um campo do direito internacional que havia se concentrado muito mais na proteção dos feridos, doentes e soldados detidos. Na mesma época, as Nações Unidas adotaram a Convenção contra o Genocídio e, nos anos que se seguiram, a comunidade internacional considerou os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e o genocídio como linhas vermelhas triplas . O direito de saber, o direito à reparação, o direito à justiça e o direito de que não volte a acontecer surgiram como marcos de referência importantes para lidar com o passado e como pilares necessários para uma reconciliação significativa. Relativamente aos marcos jurídicos e doutrinários, o mundo aprendeu algumas lições com o Shoá.

Em termos institucionais, o CICV também aprendeu duras lições. Fracassou na proteção de civis, principalmente na proteção dos judeus perseguidos e assassinados pelo regime nazista; fracassou em entender a desumanidade particular de uma resposta a acontecimentos revoltantes com procedimentos padrões; observou com impotência e em silêncio, não se esforçando – certamente não o suficiente – para fazer jus ao princípio de humanidade. O CICV falhou porque extraiu conclusões errôneas de modo imperdoável a partir de observações perfeitamente válidas. Falhou como organização humanitária porque havia perdido a sua bússola moral. Este fracasso se tornou parte intrínseca da nossa história institucional.

Vinte anos atrás, o meu antecessor, Cornelio Sommaruga – ao qual dou calorosas boas-vindas aqui esta noite – foi o primeiro presidente do CICV que reconheceu publicamente que o fracasso da organização em denunciar os fatos foi uma derrota moral. Cabe a mim reiterar o seu juízo hoje e parabenizá-lo pelo reconhecimento que fez naquela ocasião.

Desde então, escolhemos confrontar o nosso passado e adotar a transparência. Os nossos arquivos públicos são uma prova do nosso reconhecimento do passado e os nossos esforços contínuos para confrontar verdades incômodas.

O CICV também adotou uma nova política de confidencialidade, reconhecendo explicitamente que existe um caminho de condenação por atos desumanos. Escolhemos não permitir que fiquemos acuados pela lógica binária de silêncio x denúncia, que inevitavelmente leva à paralisia. Ao invés disso, o CICV desenvolveu muitas formas de ação: mobilização das Altas Partes Contratantes, participação diplomática, difusão à sociedade em geral sobre o nosso modus operandi, interrupção das atividades quando confrontados com condições inaceitáveis impostas pelas partes em conflito, retirada de um contexto em circunstâncias extremas quando a presença causaria mais dano do que ajuda, e – em última instância – denúncia pública das violações do Direito Internacional Humanitário (DIH). Atualmente, a questão principal não é denunciar ou não, mas o quê, como, quando e com quem falarmos para avançar com o nosso objetivo de reservar a dignidade humana e ampliar o espaço da ação humanitária.

Quando as atrocidades em massa não estão mais escondidas atrás dos muros dos campos de concentração e em porões escuros da Gestapo, quando a desumanidade, o antissemitismo e a exclusão fazem parte de uma tentativa generalizada para aterrorizar grupos e sociedades em geral, precisamos de estratégias mais refinadas do que o clamor público.

Haja vista os desafios da atualidade, não seria nenhuma surpresa para as pessoas aqui presentes que a estratégia atual do CICV, para um período de quatro anos, coloca uma ênfase particular no avanço da agenda da diplomacia humanitária e da sua capacidade nessa área. Devido às nossas raízes, ao nosso papel e às nossas responsabilidades, não podemos ser apenas uma organização de socorro. Devemos colocar a proteção das pessoas vulneráveis em primeiro plano, o que significa injetar uma dinâmica mais poderosa entre o nosso trabalho diário em benefício das populações afetadas pela guerra e o nosso mandato para desenvolver e promover o DIH, influenciando as políticas humanitárias formuladas pelas Altas Partes Contratantes das Convenções de Genebra.

Mesmo a melhor e mais ambiciosa estratégia institucional não resolverá os dilemas que persistem entre os elevados princípios que fundamentam a ação humanitária e as duras realidades com as quais somos confrontados em tantos conflitos hoje em dia. Sabemos todos que o oposto do fracasso não é necessariamente o sucesso. Mas isso não quer dizer que não devemos perseverar para melhorarmos. Para mim, o sucesso significa fazer as perguntas corretas, que é exatamente o que o painel de hoje busca fazer.

Fomos convidados a refletir sobre a particularidade do regime nazista e do Holocausto e se este pode estar relacionado aos padrões persistentes de um genocídio. Isto levanta uma série de questões relacionadas, tais como:

  • Se podemos distinguir entre as violações da lei que ocorrem dentro de um marco de aceitação geral das normas e violações sistemáticas que questionam fundamentalmente o princípio de humanidade?
  • Como evitar as analogias equivocadas que nos levam a conclusões errôneas?
  • O que é novo e o que é antigo?
  • Onde está a linha que divide o compromisso e o compromisso rompido?
  • Quando o envolvimento persistente e paciente é a coisa certa a fazer? E quando é uma ilusão perigosa?

Muitas pessoas se comprometeram a aprender do passado e não ver a história se repetir. Duas semanas atrás, em Yom Hashoah, ou Dia da Lembrança do Holocausto, as palavras "nunca mais" reverberaram uma vez mais em todo o mundo. Mas para o CICV, de certo modo, "nunca mais" tem uma ressonância complicada pelo que vemos e vivenciamos no terreno todos os dias. Não podemos garantir que uma catástrofe da magnitude do Holocausto não volte a se repetir. Ao contrário, testemunhamos uma série de atrocidades todos os dias, em guerras em todo o mundo.

Ao refletir sobre o significado das lições aprendidas a partir do Shoá, enquanto me preparava para estar aqui hoje, eu reli alguns dos escritos do Juiz Thomas Buergenthal. No seu livro famoso "A Lucky Child" (Uma Criança de Sorte), ele descreve a época em que foi advogado e juiz nos casos que envolviam atrocidades cometidas nos Bálcãs, Camboja, Ruanda e El Salvador, os quais acionaram a recordação dos seus dias em Auschwitz quando criança. Buergenthal personifica para mim o giro mais positivo que a história possa dar.

Muitos se lembrarão de quando Buergenthal compara a sobrevivência em Auschwitz com a vida dos meninos e meninas que sobrevivem à pobreza e violência nos bairros pobres das cidades de hoje em dia. Ele certamente nos mostrou o caminho: transformando o trauma e o puro instinto de sobrevivência em energia positiva para construir instituições, fortalecer a responsabilidade de cada um pelos seus atos e os marcos jurídicos, abrindo, assim, espaços para sociedades mais humanas. Tais são os ingredientes para garantir que as sociedades aprendam da maneira correta com o passado. Tais são os ingredientes que permitem que uma organização como o CICV avance humilde, mas decisivamente.

Seja na Síria, Iraque, Iêmen ou Palestina, seja na Ucrânia ou Colômbia, em Mianmar ou no Mediterrâneo, o CICV é desafiado todos os dias para exercer influência de modo a assistir e proteger as pessoas do impacto da violência, prevenir as violações das normas, assegurar um mínimo de humanidade e evitar o pior: este é um começo e nunca será o bastante!

Muito obrigado