É complicado

3 Postado por - 8 de abril de 2015 - Artigos

O futebol é um fato social, como definiria Durkheim. E, assim, exerce uma característica coercitiva sobre as pessoas que frequentam esse lugar. Ou seja, há um comportamento esperado, uma série de condutas próprias que não se aplicam ao dia a dia das pessoas fora desse fato social. Não há problema nenhum em uma pessoa portar a camiseta do Internacional na rua, por exemplo. Porém, dentro do estádio, no meio da torcida do Grêmio, há essa regra interna que não permite essa presença (mesmo que vários não se oponham a camisetas do Mazembe, do Racing e outros menos cotados achando “natural”, pois são clubes de futebol).

Ao mesmo tempo, diversas das coisas que acontecem apenas dentro dos estádios durante os eventos de futebol não tem “autorização” para acontecerem numa missa, por exemplo (aliás, outro fato social como definido por Durkheim). Muitas pessoas “não podem” aparecer com a camiseta do Grêmio no seu trabalho, por ser “inadequado”. Da mesma forma como há juízes que não permitem que as partes envolvidas se vistam “mal” durante uma audiência (aliás, vai de camisa do Grêmio numa audiência para ver). São procedimentos que não possuem lógica alguma que faça sentido fora do espaço onde são inventadas. E são inventadas justamente para diferir os “que conhecem” dos “que não conhecem” cada ambiente (aí já caímos no que Bourdieu chamou de campos e as dinâmicas de poder internas a eles). Afinal, ter crédito pra ti não é a mesma coisa que para um contador, uma operação não é a mesma coisa para um financista e um médico, uma causa não é o mesmo para o padeiro e para um advogado – ou seja, até palavras comuns tem sentidos diferentes para os “iniciados”.

Dois argentinos diferentes unidos pelo futebol. Videla e a seleção, Che e o Madureira.

Dois argentinos diferentes unidos pelo futebol. Videla e a seleção, Guevara e o Madureira.

O grande problema na mudança das lógicas internas desses acontecimentos, como ir a um jogo de futebol, é que as pessoas altamente envolvidas parecem considerar que elas tem mais valor do que as regras gerais definidas através das leis. Ou seja, é “normal” fumar um baseado enquanto vê uma partida de futebol. É “normal” dar uma porrada em uma pessoa que veste a camiseta do time adversário. É “normal” chamar jogador do time adversário de viado. É “normal” ameaçar espancar o juiz. É parte de uma “tradição”. E como parte  disso, dá poder pra quem detém maior conhecimento das lógicas internas desse “evento”. Há torcedores mais torcedores que outros (e há quem diga que isso é legítimo). Assim, também há quem receba pra torcer (seja dinheiro, seja auxílio para viagens, seja informações privilegiadas, seja convites para eventos, etc, etc).

É pra essas pessoas, principalmente, que a alteração das regras do espetáculo futebol é o maior problema. “Futebol perdendo a graça” é sinal de que alguém está perdendo as vantagens que adquiriu ao longo do tempo. De receber a sua recompensa. Seja ela financeira, seja ela social. Muita gente que se tornou mais “aberto” para a homossexualidade das pessoas na rua (a ponto de simplesmente fingir que não vê, por exemplo) não quer bichinhas nos estádios. Muita gente que se tornou mais “aberto” para a igualdade de gênero no trabalho (a ponto de parar de achar errado contratar uma mulher para ser sua colega simplesmente porque ela pode engravidar) segue achando que lugar de mulher é na cozinha e gritando isso pra bandeirinha (por sinal, por que não tem juíza na série A?) nos estádios. E enquanto muitos se tornaram mais “abertos” para a presença de negros na sociedade (a ponto de não fazer mais “piadinha de negão” no bar, por exemplo) ainda se acham no direito de chamar de macaco aquele jogador negro que fez algo errado. É o lugar onde “se dão o direito de extravasar”, de “serem eles mesmos”. Como isso é “normal” para a lógica interna do futebol, qualquer atitude que venha de fora pra dentro (como alguém denunciar e a pessoa ser presa) causa comoção entre os “iniciados” – ou seja, os frequentadores de estádio, os “mais torcedores”. Quando isso acaba atingindo o próprio resultado esportivo, então…

Não é a “chatice” do mundo exterior que está estragando o futebol. Quem faz isso é a violência interna do seu próprio ambiente. São suas “regras de conduta” e a força que atinge quem não as conhece (literalmente, pois podem ser espancados sem saber o motivo). É as pessoas deixarem de se portar dessa maneira imbecil e ilógica apenas dentro dos estádios e o futebol invadir o resto da sociedade através da televisão, dos confrontos de torcidas na rua, de se lotar um espaço público como um aeroporto com ambiente de estádio só porque um jogador está chegando. E enquanto as pessoas não pararem para ver que o futebol não tem nenhuma carteirinha de autorização para ser um mundo escroto e que nada justifica ser um escroto dentro do futebol só porque é “um muno separado” (porque não é, diga-se), de repente as fichas comecem a cair e ninguém mais precise ficar “sendo chato” para explicar algumas coisas até bem óbvias.

Enquanto isso não acontece, seguiremos achando que racismo é Grenal. E que esse racismo é um “clássico” sem “torcida mista”.

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6 + comentários

  • CLEBER 8 de abril de 2015 - 11:26 Responder

    Dentro da estrutura do jogo, que abrange clube, campo, estadio, jogadores, torcedores, imprensa, policia, e etc., me causa espanto os torcedores/cidadão, que em seu mundo social (casa/igreja/academia/trabalho/boteco) inteligentes, com formação, com esclarecimento se emburrecerem e deixarem-se manipular pela opinião de dirigente e jornalistas que acham comum um ser chamar o outro de macaco por que o “macaco” deu motivo. cara, é revoltante também o peso usado para julgar econdenar um lado e abrandar e ate desculpar o outro.

  • Guille 9 de abril de 2015 - 09:37 Responder

    Melhor dissertação sobre o tema, desde que foram (re?)abertas as discussões desde o caso Aranha.

    E, ainda sobre o Aranha (mas é uma lógica que perdura caso a caso), me causava muita estranheza os comentários de muitos julgando a denúncia, o posicionamento, a reação dele a partir do seu mérito esportivo. “Mas quem ele pensa que é?”, “Goleiro de merda!”, “O que ele já ganhou no futebol pra ir contra o Grêmio?”.

    Como se apenas Pelé, Magic Johnson ou Muhammad Ali pudessem ter posicionamento. E, visto que o nosso citado brasileiro ou não se posicionava ou se posicionava mal (legitimando, mesmo que sem querer, as regras do meio específico), acabava virando referência de conduta. “Mas se nem o Pelé reclamava, que direito esse aí pensa que tem?”

  • Roger 9 de abril de 2015 - 10:11 Responder

    Não esqueçamos que muita gente que se diz mais aberta à temas relevantes em uma sociedade amadurecida, ilustra posts com imagens de quem fuzilava os que pensavam diferente e agia da mesma forma com os homossexuais.

    Talvez a grande ironia seja que até os que se acham mais abertos a ponto de criticar os fake abertos age assim apenas por uma luta política, pouco se fudendo pro tema em si.

    Gosto do blog há anos, e é evidente que vocês podem e devem publicar o que der na telha. Só lamento que sempre o mesmo autor atue como um braço de correntes políticas hipócritas que tentam monopolizar as virtudes humanas em um projeto de poder que há mais de século só oferece miséria e fome para o mundo.

    • Fagner 10 de abril de 2015 - 10:59 Responder

      Tu tá falando do Capitalismo, Roger?

      E, realmente, o Videla fazia isso. São mais de 13 mil desaparecimentos forçados já confirmados e mais 17 mil por confirmar. Fora os mais de cem netos e filhos roubados de suas famílias e criados como sendo filhos de militares envolvidos na ditadura argentina.

      E, parafraseando a Luciana Genro, “braço de correntes políticas hipócritas” uma ova.

      Saludos,
      Fagner

      • Roger 10 de abril de 2015 - 12:00 Responder

        Claro, Fagner. Afinal, é essa bandeira que o ditador levantava, a do capitalismo, a do estado mínimo, claro, faz muito sentido. Nada interfere menos no estado do que um regime militar. (se são essas diretrizes que tu queres manter)

        Já não sei se tu falas há anos assim por ignorância ou falta de caráter, Lembro da vez que até enquadrasse um companheiro do blog por suposto sexismo, e logo tivesse que recuar com o rabo entre as pernas. Voltando, qual a diferença entre esses dois ditadores? Pouquíssimas, ambos favoráveis aos regimes militares agressivos e às ideias de total intervenção do estado.

        O que isso tem a ver com o Grêmio? Pelo jeito agora, além da doutrinação em escolas e faculdades como Com. Social, Ciências Sociais, História, Geografia, etc, tu queres usar até uma paixão esportiva como pano de fundo para a construção de heróis e mitos de correntes políticas que devastaram e até hoje devastam países por todo o mundo.

        E claro, nada melhor do que encerrar essa pérola tentando construir mais um mito e parafraseando a política que defende o regime totalitário na Venezuela.

        No mais, não vou usar o teu espaço e do pessoal blog pra manter essa discussão, não serei egoísta a esse ponto. Ainda vais buscar algo que eu falei, tirar do contexto e formar o vilão que tu precisas para justificar a existência dos teus heróis ou dizer que estou tentando de censurar.

        Continuo sendo fã da maior parte dos textos publicados aqui, os quais leio desde 2007.

        Obrigado.

  • edi rorato 11 de abril de 2015 - 09:36 Responder

    Finalmente eu vejo um texto coerente sobre o assunto.
    Entretanto, a conclusão é muito simplista e poderia ser mais explícita assim como foi a introdução do tema.

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